CARTA A FRANCES FARMER 

01/06/2015

DE RICARDO PRETTI

Querida Frances Farmer,

Em 1970 você deu o seu último suspiro, em Indianápolis, depois de ter sofrido a maior parte da sua vida abortada pela estupidez, mesquinhez e crueldade sádica da mentalidade provinciana da américa do norte. Talvez tenha sido um grande alívio esse seu último suspiro, o fim de um tormento. O que você nunca soube (e nem poderia saber), e por isso resolvi te escrever 45 anos após a sua morte, é que nesse mesmo ano, alguns jovens estavam realizando alguns dos filmes mais explosivos e alucinados da história do cinema, no Rio de Janeiro. Enquanto você morria, sozinha e incompreendida, há anos sem trabalhar com a sua arte e se refugiando (exilando?) numa igreja católica chamada Santa Joana D’arc, alguns jovens sob a exigência da liberdade criativa e sob o signo da ruptura estavam realizando filmes-bombas e vivendo um dos momentos do cinema mais rebeldes e intuitivos em uma produtora-gangue chamada Belair.

Essa coincidência de datas me deixou pensando: e se você tivesse tido a chance de conhecer esses jovens da Belair? Se tivesse vindo ao Brasil, logo antes de morrer, trabalhar com eles? Como seria a nossa lembrança de você? Acredito que esses jovens teriam te vingado, teriam amado a sua loucura, teriam te oferecido um baseado incrível e uma caninha da boa pra acompanhar. Consigo te ver numa imagem em 16mm dançando Gonzaga colada ao Grande Otelo enquanto a Helena, incorporando a Sonia Silk, grita o seu pavor pela velhice na tua cara. Consigo enxergar o teu sorriso de bêbada direcionada à Gladys, enquanto Guará nos adverte do Barão. Como seria você abordando os marinheiros com Guará? Como seria você beijando a boca da Helena, da Lilian e do Otoniel? Como seria o teu figurino em Cuidado Madame e Copacabana Mon Amour? O que o Julio e o Rogério fariam com você? Posso apenas imaginar (lembro do filme em que Jean Seberg foi filmada pelo Garrel, chamado Les Hautes Solitudes.). Frances, você teria sido o perfeito horror das 1001 maravilhas! Você andando pelas ruas da zona sul carioca e provocando os meninos de rua e algumas donas de casa avulsas (naquele momento as ruas ainda pertenciam ao cinema também). Vir pra cá teria sido a vingança mais incrível que você poderia ter realizado contra a tua mãe e contra todos aqueles que te jogaram no hospício! O terceiro mundo devorando e cagando a norte americana em plena Copacabana.

Mas você nunca veio ao Rio. Morreu em Indianapolis, enquanto os jovens se exilaram em Londres. Os filmes da Belair foram censurados aqui no Brasil e permaneceram inéditos por muitos anos (alguns se perderam). Eles estavam numa ditadura muito violenta e vil, talvez não muito diferente do que você viu e viveu. Muitos que ficaram aqui foram parar na prisão, sendo torturados e assassinados, enquanto você (como muitos que ficaram aí) foi parar no hospício sendo lobotomizada e estuprada pelos guardas. Pra onde fugir?

Frances, comecei a te amar após ter te visto em um filme, mais nada. Você aparece e canta Aura Lee para uma multidão de homens iletrados num cabaré fuleiro. Todos param a gritaria e se apaixonam, eu também me apaixono, talvez porque você também estivesse apaixonada. Seus olhos não mentem e não mostram pudor, eles dizem que querem o caos, não forjam uma suposta vontade de inocência, não se iludem com as falsas utopias. Mas tem um homem no filme que é idealista, arrogante e vaidoso, quer construir uma sociedade, erguer uma civilização do nada, custe o que custar. Você não precisa de nada disso, você precisa do mundo em estado bruto. A sociedade é para os hipócritas, enquanto o mundo é para os apaixonados. Ele te conquista pra logo depois te largar em nome da ambição. Você some do filme, pra voltar ao final como a filha de si mesma, pois você só é possível na impossibilidade da juventude. A juventude ao final se vinga.

Semana passada (03 anos depois) resolvi, finalmente, assistir a outros filmes que você fez naquela velha hollywood. Sei que você odiava esses filmes, sinto que te traí, e isso me dói. Só não me arrependi inteiramente porque pude ver com os meus próprios olhos o que se perdeu em seus olhos. O mundo não estava mais nos seus olhos. Via apenas olhos de ressaca, de quem passou um bom tempo intoxicada por um vazio, usurpada de sua paixão.

Por isso tudo estou aqui escrevendo uma carta para você (45 anos depois da tua morte e 80 anos depois do filme que você realmente fez). Mas também te escrevo, pois estou pra lançar nos cinemas três filmes sob o codinome de Operação Sonia Silk. Os filmes se chamam: O uivo da gaita, O Rio nos pertence e O fim de uma era. Fizemos os 3 filmes em duas semanas de filmagem. Foi a nossa maneira de experimentar o impossível dentro do possível que a Belair e você um dia instauraram, pois durante todo esse tempo você também nos acompanhou, a sua voz cantando Aura Lee nos acompanhou, e hoje percebo que fizemos esses filmes com você também, do jeito que deu, pra mantermos a sua chama acesa, e continuar descobrindo, através de você, que a paixão é dos bravos. Foram os seus olhos de paixão que nos ensinaram que o amor atravessa gerações, que o amor é feito de coincidências, mas que é preciso lutar pra mantê-lo vivo.

Você lutou e a Belair lutou, ainda que tenham fracassado. Digo isso sem pesar, o fracasso é muito mais apaixonante que o sucesso. O medo do fracasso gera um cinismo tenebroso. Da minha parte posso dizer que ainda estou tentando fracassar, é difícil, mas estou a tentar.

Lá no último filme da Operação Sonia Silk dá pra ouvir você, também dá pra ouvir a Helena Ignez e a Maria Gladys. Elas falam de você, Frances. Leandra Leal e Mariana Ximenes, nós a contemplamos em toda beleza e juventude. Três gerações de musas, vocês são completamente diferentes e por isso mesmo fascinante. Um belo encontro esse filme nos ofereceu. Foi a nossa maneira de ter feito você vir ao Rio pra passar um tempo na companhia delas. Se não conseguimos te vingar, espero que estejamos conseguindo te amar.

Com todo o coração,

Ricardo Pretti

PS: “Irmãos humanos que ao redor viveis, não nos olheis com duro coração. Oh, espectador, não nos olhei com duro coração.”