O BEZERRO DE OURO FOTOGÊNICO

20/09/2012

Um dos fenômenos mais curiosos da atualidade é a ausência de ambição artística em muitos dos jovens que estréiam na direção cinematográfica. Há alguns anos, os primeiros filmes de um realizador indicavam um desejo evidente de se esquivar aos caminhos já batidos. Esse estado de espírito gerou o que na época se chamava de avant-garde, cujo produto mais característico foi sem dúvida Entr’acte, de René Clair.

Nem todos os filmes dessa categoria foram obras-primas, longe disso. Quanta bobagem e muitas vezes pretensão em alguns! Mas pode-se afirmar que, quase sempre, o autor trabalhou sem qualquer preocupação mercantil. Acreditava-se em subverter o mundo, mas a idéia de que isso podia dar dinheiro só aparecia lá no fundo.
Agora, fico atônito ao ver jovens galhofeiros iniciarem resolutos a carreira cometendo friamente Couer de violette, drama em cinco atos, ou Toutes ces dames au salon, grande farsa militar. Antes de começarem, eles já perderam todas as ilusões. Sabem o que não sabíamos, isto é, que mais cedo ou mais tarde sempre se chega a esse ponto. Menos ingênuos que a nossa geração, pois levamos muitos anos a perder nossas grandes ilusões, eles saltam logo de saída na imundície, sem sequer pensarem em tapar o nariz.
O que vai resultar desse abandono trágico de toda uma corporação, dessa baixeza diante do dinheiro, desse esquecimento de toda e qualquer dignidade? Devemos nos desesperar? Não mais que outros setores.
Os realizadores de filmes são os filhos de burgueses. Levam para a carreira as fraquezas de sua classe decadente. O público das salas exclusivas, que decide muitas vezes o sucesso dos filmes no lançamento, é também burguês. Só depois que sancionam o sucesso de um filme é que os cinemas dos bairros se apressam em exibi-los. Assim, o cinema, uma arte essencialmente popular, é fabricado e dirigido por pessoas que, como podemos constatar de ano para ano, se afastam cada vez mais do povo.
Sem mais delongas, é preciso restituir o cinema ao povo. É preciso arrancá-lo dos mercantilistas da direção, dos comerciantes das montagens e dos grandes artistas falsificados.
Devemos pedir aos mais novos que nos ajudem a criar o cinema com o qual sonhávamos quando éramos jovens. Não se trata de fazer avant-garde: trata-se de não filmar coisa alguma que não saia diretamente do coração.
Jean Renoir, 1936

 

 

Leio esse texto e tenho uma forte sensação de que ele poderia ter sido escrito hoje, o que me deixa triste. Ao mesmo tempo, por outro lado, fico feliz, pois sinto minhas utopias recarregadas. 

O que eu quero não é o que eu vou conseguir, mas é o que me move. E o importante é querer, continuar querendo e seguir em movimento. Porque mover-se já é uma coisa maravilhosa. Contagiar e contagiar-se pelo movimento – o movimento pelo movimento -, enfrentar a ordem, bater de frente com as vozes que exigem resultado, resultado e resultado. O utilitarismo é uma merda. A comodidade é uma merda. Escolher fazer cinema foi pra mim uma escolha radical, permanecer fazendo cinema não pode deixar de ser isso. Já cansei de escutar que pra se ganhar dinheiro é preciso sujar as mãos. E mesmo que a história do cinema brasileiro careça de exemplos contrários, prefiro continuar acreditando que é possível seguir fazendo filmes com as mãos limpas e viver disso. Fazer o filme que se quer fazer, porque existe uma necessidade vital de faze-lo, uma necessidade de movimento, de descoberta, de conexão com o outro (seja esse outro quem for). No Brasil não existe indústria. Se existisse talvez fosse possível que essa indústria um dia amadurecesse ao ponto de comportar também expressões artísticas e não jogadas meramente mercantis. Mesmo desconfiando de tal hipótese, nesse caso, a questão seria outra: como manter as mãos limpas dentro de um sistema industrial. Entenda-se por mãos limpas “não filmar coisa alguma que não saia diretamente do coração.”

 

(Guto Parente)